PROPOSTA CURATORIAL

“(…) Assim, alguns dos irmãos mandados para esta aldeia, que se chama Piratininga, chegamos a 25 de Janeiro do Ano do Senhor de 1554, e celebramos em paupérrima e estreitíssima casinha a primeira missa, no dia da conversão do Apóstolo São Paulo e, por isso, a ele dedicamos nossa casa. (…) Os índios por si mesmos edificaram para nosso uso esta casa: mandamos agora fazer outra algum tanto maior, cujos arquitetos seremos nós, com o suor do nosso rosto e o auxílio dos índios.”

(Padre José de Anchieta. Cartas. Quadrimestre de maio a setembro de 1555.)

A certidão de nascimento de São Paulo é uma carta.

Nas suas epístolas à Companhia de Jesus em Roma, o padre José de Anchieta narra metodicamente o cotidiano da recém fundada vila de São Paulo. Uma produção extensa, cheia de reflexões, dúvidas e questões que muitas vezes ficavam sem resposta. A incerteza inerente a esse tipo de correspondência, entre dois mundos tão afastados geograficamente, aponta-nos algo fundamental dessa forma de escrita: redigir uma carta é, antes de tudo, um ato de falar consigo mesmo. Olhar para seus próprios pensamentos materializando-se em palavras, testemunhar a constituição de algo fugaz e íntimo através da convenção dos símbolos, normas e leis da linguagem. E por fim, reconhecer-se, quase narcisicamente, no reflexo daquilo que foi redigido. A leitura atenta das cartas de Anchieta diz-nos mais sobre o seu rosto aflito, de homem ibérico e cristão no novo mundo, do que do índio que talvez nunca tenha entendido que o seu mundo era novo.

Porém, redigir uma carta não é apenas um exercício narcísico. Submeter-se a este tipo de escrita pressupõe a consciência e a conivência com uma série de fatores externos, alguns deles incontroláveis.

Primeiramente, pressupõe a existência de um destinatário que a receberá. Esse dado faz com que a carta se transforme num espelho de duas faces e numa espécie de construção dialética presa no limbo da antecipação de uma conversa porvir.

Pressupõe também seguir certos códigos e normas que façam com que a correspondência seja entregue. Como se a linguagem não fosse convenção (excludente) suficiente, ainda por cima, precisamos de selos, carimbos e dinheiro, pressupondo-se que o destinatário tenha um endereço reconhecido oficialmente.

Por fim, escrever e enviar uma carta é submeter a mensagem a um percurso pela cidade. Qual flâneur que se deixa seduzir por caminhos outros, esta está sujeita a mãos alheias, extravios e voyeurs.

Ao chegar ao seu destino final, a carta carrega outra dimensão que está para além da mensagem inicial. Os limites de suas folhas e envelope são agora os paralelos e meridianos de uma nova cartografia da cidade, que expressa os lugares, os convênios e as mãos pelas quais passou. O momento em que a mensagem chega ao seu destinatário, aponta o que significa viver junto: uma constante definição e negociação das relações entre seus concidadãos no ambiente urbano e sob uma complexa armação administrativa e regulatória.

A carta não começa nem termina no momento de sua escrita, é um vetor no espaço em direção ao futuro. Não é por acaso que, quatrocentos anos depois de Anchieta, a concepção de Brasília nasce em tom de carta.

Ao propor o uso dessa forma-linguagem como um exercício de comunicação entre um grupo de profissionais que pensam e atuam sobre a cidade e o representante municipal do poder público, a exposição Cartas ao Prefeito pretende colocar a cidade, com toda sua complexa trama sócio-espacial, no centro da discussão. O período da exposição, início da campanha eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, faz com que esta participe de um momento de (re)definição das estratégias e expectativas para o futuro da metrópole. De modo a potencializar o seu impacto neste realinhamento de objetivos e incluir o maior número de vozes, a exposição será acompanhada pelo seminário Cartas Abertas: uma série de discussões com alguns dos agentes que têm atuado de forma ativa na estruturação de um pensamento crítico e propositivo perante a cidade. Tendo em conta o caráter redutor de uma seleção entre tamanha complexidade de vozes, “abrir as cartas” ao público é, acima de tudo, um vetor para a (re)ativação do desejo como ferramenta de transformação para além do possível.

Dizer sobre e para a cidade é também refletir-se no desejo de fazer e ser cidade.

São Paulo, 12 de julho de 2016

Bruno de Almeida e Fernando Falcon